Eu não sou uma mesa
Os convites chegam prometedores: conversas de esticar horizontes, debates de construir pontes. Papos de furar bolhas que nos levarão, enfim, à tão sonhada terra prometida. Chegam bonitos, e uma grandiosa maioria realmente o é.
Do outro lado, pedidos para entender melhor o e-mail ou o telefonema: honrada pela lembrança, mesmo. Por se lembrar de mim nessa multidão de inspirações que existe na cidade, no país. A ideia é falarmos sobre o quê, exatamente? Só para eu me preparar melhor para o dia. E a resposta te alcança como um deja vu: sobre a periferia, mesmo.
E nem é no plural, periferias. Como se Peixinhos fosse o Grajaú com Manguebeat. Uma entre Recife e Olinda, outra, zona sul de São Paulo. Muito em comum, sim, mas lugares com identidades completamente diferentes, mas percebidas como a mesma coisa.
Moradoras e moradores de favelas e periferias não falam apenas de favelas e periferias, mas a partir delas. Outro dia conversávamos sobre isso, depois de mais um evento em que fomos uma mesa, e não pessoas que produzem o mundo de maneira igual a todo o restante que estava ali, opinando sobre qualquer assunto: os especialistas. Ficou assim, naquele dia: uma mesa, todo mundo das margens e bordas da cidade concentradas nela.
Não é que não possa ser assim, mas é que precisamos que não seja apenas assim, para conseguir construir futuros coletivos.
Os convites podem ser para falar sobre literatura, saúde, educação, autoconhecimento. Gestão de resíduos sólidos ou logística reversa também entram na lista. Olha isso, democratização da Alimentação saudável, como faz o Armazém Organicamente, entre tantas outras iniciativas. Todo lugar é lugar de todo mundo.
Não se trata de acabar com as mesas temáticas, não é isso nunca. Me leia bem. Mas é um pedido para a pessoa convidadora educar o olhar para compreender que essas existências, as periferias e favelas, e todas as outras, têm uma opinião sobre diversos temas e assuntos, e não falam apenas de si mesmas. Ou das mesmas coisas para as quais sempre são convidadas a falar: e o seu bairro continua violento como era nos anos 1990?
Será que não está sendo reproduzida nestes lugares a lógica de exclusão que a sociedade já produz, diariamente? Existe um grupo, de geralmente homens, de geralmente homens brancos, de geralmente determinadas classes sociais, com uma autoridade naturalizada sobre o todo. E tem aquele outro ali que chegou de longe para falar sobre a parte, sobre o que lhe cabe nessa conversa.
As margens não constroem apenas personagens, existem especialistas de tudo que possa imaginar nas favelas e periferias, também. Convide-as, convide-os. Reconheça seus saberes, deixe que o que sabem e fazem influencie o debate público.
Da próxima vez que você for a um evento, em qualquer evento, sobre qualquer assunto, eu te convido a se fazer essas perguntas: se existisse uma moradora do Morro do Papagaio, com vivência e experiência sobre o que está sendo discutido na mesa aqui na minha frente, para onde essa conversa iria? O que nasceria de, realmente diferente e novo, neste debate? Quais possibilidades de reflexão brotariam dessa voz que levaria a plateia a outros lugares de imaginação?
A pluralidade de vozes, de corpos, de formas de se existir, de identidades, de seres, constrói debates plurais, que geram ideias plurais, que edificam sociedades plurais. Sociedades de caber todo mundo. O contrário disso só faz a gente ser nosso próprio líder, andar em círculos, como cantou Renato Russo.
Eu sei que tem pessoas que gostam dessa ideia de que nada mude, de congelar o tempo e as estruturas, mas essa coluna é para aquelas que sabem que para conversar com todo mundo, todo mundo precisa ter espaço para falar.
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