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Tony Marlon

Entre mudar você ou o mundo, escolha o primeiro

ECOA

18/10/2019 10h04

Era uma sala de graduação, ou pós-graduação, eu já me perdi um pouco no tempo das coisas todas. O convite me alcançou assim: conte para elas e eles o que você tem feito para transformar o mundo.

E lá fui eu.

Eu entrei, aqueles sorrisos convidativos para uma palestra feita no último horário de uma quinta-feira, que fui agradecendo no caminho, e comecei: olhe, estou muito feliz de estar aqui com vocês, viu. É um prazer vir neste prédio. Não sei se vocês sabem, eu não sabia nem como entrar aqui, qual era o portão certo de entrar pessoas. Nunca esteve na minha imaginação que eu poderia, algum dia, estar aqui dentro, e isso é sério. Mas acabei de realizar que eu estou, e nem foi como aluno. E todo mundo prestando muita atenção. E eu: entrei por aquela porta não pelo que estudei, ou onde. Eu vim porque a gente anda produzindo o mundo lá fora, também. E é urgente este espaço aprender logo isso. Sorriram por isso.

Daí que comecei contando quem eu sou, e como quem eu sou foi construindo o que eu faço hoje. É que tem isso: a gente materializa a gente nas coisas que vai realizando pelo caminho. Então, veja bem o que você anda sendo aí nas coisas que você faz, viu. E continuei: contei que, pra mim, e isso não é uma verdade, é só o que eu acredito, qualquer iniciativa que botamos no mundo é, antes de tudo, para curar uma dor que, no fim, é nossa. Aí você vai se esbarrando com outras pessoas que têm dores parecidas, ou dores muito diferentes, mas que conversam com a sua dor, e vai montando um quebra-cabeça, e o seu projeto, a sua iniciativa, vai brotando no mundo. O mundo corporativo chama isso de montagem de equipe. Eu achei uma frase mais perto de como eu enxergo as coisas: os dispostos e dispostas se atraem.

E assim foi a conversa. Era foto, um vídeo aqui, um depoimento ali. Coloquei Manoel de Barros em tudo, o Flamengo em uma boa parte, já que eu nunca sou apenas o que eu faço. Eu sou isso também, mas não só. Supervalorizar é uma forma de desumanizar, também. E senti que estavam gostando, que estava fazendo sentido, de sentir, não de razão. A mão vai no meio do peito. Tem que, quase no fim, com o professor aparentemente feliz por eu estar entregando o que ele havia imaginado, eu perguntei: e depois disso tudo, levanta a mão, por favor, quem aqui quer largar o seu trabalho agora e ir mudar o mundo?

E todas e todos botaram a mão para o alto. Foi aí que eu disse que eu, talvez, não tenha me feito entender, ou que a turma mesmo não havia captado tudo que eu disse nas pouco mais de duas horas de conversa. Transformar o mundo não carece de um CNPJ, ou de espaço físico, ou de um nome fantasia, ou de uma ONG: Organização Não Governamental. Você pode escolher ser ING, também: Indivíduo Não Governamental, e mudar radicalmente o país.

Que transformar o mundo tem mais a ver com mudar a maneira de estar e caminhar pela vida, mesmo. Está mais perto dos comentários que fazemos nas redes sociais, por exemplo. Que tipo de coisa a gente anda espalhando por aí? Igual depois da palestra, que elas e eles sairiam com seus carros apressados para casa, e com razão, dia cheio de acontecimentos, e que talvez nem percebessem que cortaram fila de uma senhora de setenta anos na portaria de saída. Ela esperava havia alguns minutos e nunca conseguia ir para casa. Quer transformar o mundo? Seja a pessoa que percebe a senhora de setenta anos na fila de saída da portaria querendo ir para casa, já tarde da noite.

Eu escutei rostos me observando, parecia que eu estava no extremo do contraditório. Quem dizendo isso, justo a pessoa que veio aqui contar sobre os espaços e projetos que foi construindo. E eu terminando a noite, disse assim: ter criado essas organizações foi o caminho que escolhi caminhar, que faz sentido pra mim. Que me dá sentido. Foi a maneira que eu encontrei de botar no mundo as minhas acreditações. Mas isso não quer dizer que seja a única maneira, o único caminho.

Projetos e organizações são essenciais na sociedade, o contrário de dizer isso é injustiça de quem sempre ganhou o jogo. Mas, veja, aqui, com vocês, não é o caminho, é o jeito de caminhar, que realmente importa nisso tudo de transformação. Se te disserem para empreender socialmente, que só assim você será feliz e o mundo melhor, questione. As urgências do mundo não precisam de uma multidão de empreendedores e empreendedoras sociais, eu acredito. A gente só precisa de todos e todas nós despertas, dispostas e disponíveis para o futuro que a gente merece ter. Se isso acontecer, ninguém precisará ser a mulher ou homem do ano, a capa da última revista de quem salvou o mundo. Nós todos e todas seremos a geração do século, e isso bastará para nos salvar de nós mesmas.

Eu voltei para casa pensando em tudo que eu mesmo disse, a palestra foi para dentro de mim. Lembrei hoje, acordando, seis anos depois.

 

Sobre o Autor

Formado em jornalismo pela Universidade Santo Amaro – UNISA, Tony se reconhece antes como educador, feito todo mundo é. A partir do Campo Limpo, periferia da zona sul de São Paulo, trabalha por uma comunicação que mova positivamente corações, discursos, espaços e relações. Acredita que "Dislexicando" é a coisa mais bonita do mundo e quer o primeiro parágrafo de "O Livro dos Títulos" em sua lápide, lá no futuro. Anda falando por aí: "Não fosse o Sarau do Binho, até hoje eu não saberia que poeta é alguém que solta pipa na laje". É autor do podcast https://paisagemsonora.com

Sobre o Blog

Um espaço para boas e necessárias conversas sobre pessoas e seus movimentos de transformação. E todos são.